Uma partezinha da biodiversidade
Um coelho pensador se une a uma garça viajante. Ambos são leitores, isso está claro. Cada um deles representa um conjunto de ideias e crenças que pretende guiar os seres humanos a um futuro mais justo. Quando o artista Renan Santos foi convidado a criar um mural para a Escola de Humanidades, a primeira ideia foi articular o humanismo clássico com o humanismo contemporâneo.
Embora tenha se originado na Europa, o humanismo é hoje multicultural. Assim como o humanismo clássico, o novo é uma aposta nas pessoas: respeitando as singularidades de cada um, seremos capazes de compartilhar uma experiência ética comum que vai ser tão libertadora quanto responsável.
Ao ressaltar o caráter secular do humanismo do século 21, Julia Kristeva alerta aos homens e às mulheres que uma vez que passamos a nos considerar como os únicos legisladores da moral e da ética, será “somente graças ao contínuo questionamento da nossa situação pessoal, histórica e social” que poderemos decidir os rumos da sociedade e da história.
Entre pensadores indígenas brasileiros, a postura humanista antes pergunta: somos de fato uma humanidade? Ailton Krenak alerta: “Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano”. Esquecemos que somos parte da natureza, que somos apenas uma partezinha da imensa biodiversidade do planeta.
Vivemos hoje no antropoceno, a era dos Humanos. Estamos espalhados pelo planeta inteiro e nos multiplicamos num ritmo veloz. As ações humanas impactam o ambiente com a mesma força que os fenômenos naturais.
Colocarmo-nos no centro, porém, talvez não tenha sido a melhor ideia para a sobrevivência do planeta. “Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”, diz Krenak.
O reconhecimento de que não estamos sós na Terra é essencial para a manutenção da vida, e é o que levou o artista Renan Santos a imaginar essas figuras antropomórficas. O novo humanismo precisa ir além do humano. Se observamos os livros sobre os quais o Coelho está sentado, percebemos que ele se apoia no cânone e representa o humanismo clássico: Dante Alighieri, Esopo, Charles Baudelaire e Fiodor Dostoiévski sustentam sua visão de mundo. Mas os livros que a garça leva na viagem são obras contemporâneas: com Toni Morrison e Clarice Lispector a tiracolo, a garça entende que o novo humanismo é feminista, múltiplo e secularizado.
O coelho, ou a lebre, não foi uma escolha ao acaso.
Por sua natureza prolífica, ele é símbolo da renovação da vida; e por abrigar-se dentro de tocas, algumas culturas o associam à ideia da terra como mãe. De modo mais direto, por ser um animal muito veloz, o coelho virou símbolo de rapidez. Em fábulas e lendas de diferentes povos, a lua é vista como um coelho, pela natureza notívaga do animal. O certo é que o coelho é capaz de avançar na escuridão, seja da terra ou da noite.
Foi um coelho que conduziu Alice pelos mistérios do País das Maravilhas. Convencido de que está sempre atrasado, o coelho de Lewis Carroll usa um relógio de pulso que em nada o ajuda. Assim como nós, ele vive na ilusão de ser dono do tempo, mas o tempo é fugidio por natureza. A velocidade da fala e dos gestos do coelho não pode fazer com que ele chegue pontualmente a lugar algum porque ele está eternamente preso a um passado no qual se atrasou e a um futuro no qual ele nunca chegará. O coelho corre porque se esquece do presente.
Já o coelho inventado por Clarice Lispector em O mistério do coelho pensante e outros contos gosta de ficar olhando as coisas, e assim torna-se um coelho pensante. Era um coelho comum, igual a qualquer outro. Mas o coelho de Lispector é dado a ter ideias e por isso descobre um misterioso jeito de fugir de sua prisão. Solto, é pelo nariz que o coelho de Lispector descobre que a Terra é redonda. “Só há dois modos de descobrir que a Terra é redonda: ou estudando em livros, ou sendo feliz. Coelho feliz sabe um bocado de coisas”.
Um coelho que abandona a corrida é um coelho que renuncia à velocidade para ganhar o pensamento. O coelho aprendeu que toda corrida contra o tempo é fadada ao fracasso; a única possibilidade de fuga é não correr. Quando o coelho se dedica a observar em vez de vencer a tartaruga, passa a conhecer o prazer da liberdade. Por ser livre, ele é capaz de, toda noite, retornar à toca e deixar que a vida respire no ritmo dos batimentos do coração da Terra.
Nós, que não somos coelhos, também sabemos um bocado de coisas. Mas não somos capazes de compreender o mundo só pelo nariz; para fazer sentido da realidade, precisamos de um pouco mais do que a experiência direta do contato com o mundo. Precisamos da mediação da linguagem. Por isso, sabemos, por exemplo, que não existe a oposição entre “estudar em livros” e “ser feliz”: essas duas coisas podem e costumam andar juntas, porque o conhecimento nos leva a criar mais do que um sentido, ele nos permite criar a nós mesmos.
É na união da mente e das percepções físicas que inventamos o mundo, coisa que o escultor Auguste Rodin já sabia quando esculpiu a clássica imagem d’O pensador. Disse ele: “O que faz meu Pensador pensar é que ele pensa não só com o cérebro, mas também com suas sobrancelhas tensas, suas narinas distendidas e seus lábios comprimidos. Ele pensa com cada músculo de seus braços e pernas, com seus punhos fechados e com seus artelhos curvados”.
A garça que vai ler Clarice Lispector na viagem é a Maria-faceira, ou Syrigma sibilatrix, ave presente em diversas regiões do Brasil e única garça brasileira capaz de viver tanto em locais alagados quanto secos. Sua capacidade de adaptação é também um trunfo da renovação da própria terra. A Maria-faceira é uma das primeiras espécies a colonizar áreas recém-queimadas, ajudando a fazer brotar vida nos domínios da morte. Nada mais adequado quando lembramos que a ave Fênix às vezes se manifesta sob a forma de garça.
A criação do desenho para o prédio da Escola de Humanidades foi uma obra coletiva, atravessada pelas ideias da equipe do Instituto de Cultura. Isso não significa que a autoria não seja definitivamente de Renan Santos, cujo traço é reconhecível com facilidade e cujo projeto artístico é de uma integridade rara. Quando, na ideia de representar a juventude no desenho da garça, o diretor do Instituo de Cultura, Ricardo Barberena, sugeriu que ela usasse fones de ouvido ou patins roller, Renan foi definitivo no não. O ilustrador não aceita desenhar algo que não faça sentido dentro do conjunto da sua obra e das suas referências artísticas. Para criar o mural na PUCRS, Renan começou trabalhando em pequena escala. Primeiro, fez os desenhos a lápis. Depois, passou para a aquarela e para a pintura com guache, ainda em tamanho pequeno. Com a figura quadriculada e a parede do prédio também quadriculada, Renan passou a reproduzir os traços em grande escala usando tinta látex comum, pincel e rolo.
A garça olha para o muro e, se pudesse rir, é o que ela faria. Considera risível esse minúsculo empreendimento humano. A garça desconhece fronteiras, e a tentativa artificial de criar limites imaginários soa ingênua para ela. Do lado de cá e do lado de lá, a garça encontra o mesmo sol, e também o mesmo ar acinzentado; a mesma água, e também o mesmo plástico. Para ela não existe lá e cá. Um muro não é mais que uma piada para a garça.
Para criar a Maria-faceira das Humanidades, Renan mergulhou na simbologia. Por causa do bico comprido, a garça é símbolo da curiosidade e da penetração na sabedoria oculta. Ao contrário da maioria das garças, a Maria-faceira não voa com o pescoço dobrado em forma de S: ela ganha os ares com o pescoço esticado. Se isso será sinal de orgulho, de curiosidade ou de determinação, apenas a garça saberia dizer. Ave migratória, ela está presente nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, ela também habita Venezuela, Colômbia, Paraguai, Bolívia e Argentina.
A Maria-faceira é conhecida também como Garça-cantora, o que serve para confirmar a sabedoria do dito popular de que quem canta seus males espanta. O som que ela emite é famoso por se parecer ao apito de uma locomotiva. Mas, antes de nós, antes da era moderna, o que terão pensado os seres humanos que ouviam a Maria-faceira? Com o que poderão ter comparado seu canto, já que ainda não existiam os avanços tecnológicos que, por meio de seus músculos maquinais, geraram um ruído de garça? Conforme avançamos na história e insistimos na ética do novo humanismo, é preciso lembrar que a verdade reside sempre no avesso, e só é possível que tenha sido a locomotiva a imitar a ave. Está aí a nossa humildade perante a natureza.