A sabedoria das ambiguidades
A coruja costuma ser símbolo de conhecimento, estudo e sabedoria, embora ela também possa ser vista, em algumas culturas, como uma ave de maus agouros. Essa ambiguidade se deve a diferentes interpretações da natureza notívaga da coruja. Nas culturas pré-astecas, ela era associada ao deus da chuva; já com o estabelecimento da civilização asteca, a coruja passou a ser vista como mensageira de maus presságios. Para os indianos, ela era associada à noite eterna dos mortos; já pensadores esotéricos do século 19 entendiam que ela era tão clarividente que era capaz de enxergar mesmo em meio à escuridão do desconhecido.
Seria fácil escolhermos apenas um aspecto da coruja ao nos aproximarmos do mural de Kelvin Koubik, na Rua da Cultura do Campus da PUCRS. Afinal, uma das grandes inspirações para o desenho foi o Museu de Ciência e Tecnologia da Universidade, espaço de aprendizado e investigações científicas. Para os gregos, a coruja é justamente o animal que acompanha Atena, a deusa da ciência. A ave era, então, associada ao conhecimento racional, em oposição ao conhecimento intuitivo.
Podemos nos ater exclusivamente a Atena, mas também podemos fazer uma aposta na ambiguidade da coruja, reconhecendo que toda tentativa de conhecimento do mundo traz em si uma falha original: toda observação é única de quem observa e todo estudo é um recorte. Como numa fotografia, enquanto escolhemos analisar algo, estamos deixando de fora todo o resto que difere de algo. E, embora o mundo seja o mesmo, o conhecimento que a humanidade tem dele não é o mesmo que as baleias, ou os cachorros, ou eventuais alienígenas terão dele. Supor que o nosso conhecimento é mais correto ou mais completo é vã arrogância antropocêntrica. Na longa história da vida sobre a Terra, somos recém-chegados, e há rincões do planeta nos quais sequer somos capazes de sobreviver, que dirá compreender.
Aceitar as ambiguidades significa aceitar a dúvida
Aceitar as ambiguidades significa aceitar a dúvida. Ao contrário do que muitos pensam, a ciência não se constrói em cima de certezas, mas em cima de certezas provisórias, e aqui o adjetivo faz toda a diferença. O verdadeiro conhecimento sempre duvida de si mesmo. Secretamente, o sábio é aquele que torce pelo próprio erro, espera que ele seja em algum momento corrigido e ele possa assim testemunhar o nascimento de uma realidade mais verdadeira do que a verdade anterior.
"A realidade é aquilo que quando você para de acreditar, não desaparece", definiu o escritor Philip K. Dick. Para muitas correntes psicanalíticas, a realidade material é o lugar onde o sujeito encontra tanto as limitações para seus desejos quanto os meios para concretizá-los. Freud supunha que os sonhos formavam vínculos entre a realidade psíquica e a realidade exterior e, embora costumemos igualar os sonhos a delírios ou fantasias, Freud via neles um caminho de investigação e conhecimento. A psicanalista Izabel Azzi pergunta: “Dessa forma, o despertar do sonho põe o sujeito diante da contradição no seio da realidade. Como saber se essa situação vivida como realidade é um sonho?”. Como Shakespeare escreveu, “somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; nossa breve vida está cercada pelo sono”.
A psicanálise nos leva a questionar se a vigília é o único estado em que somos capazes de aprender. A representação contemporânea da coruja costuma estar relacionada a atividades intelectuais. Isso provavelmente se deu pela vigilância noturna das corujas: elas viram a noite despertas, assim como muitos estudantes viram as noites sobre os livros. Mas talvez possamos renovar a metáfora da coruja. Talvez ela seja simultaneamente a ave da sabedoria e a ave da escuridão.
Considerado um dos Pais da Igreja cristã, São Paulino de Nola, no século 5, já percebia no animal suas capacidades ambíguas, descrevendo-a como observadora da luz do mundo também nas trevas. A coruja seria, portanto, uma boa amiga em épocas obscurantistas, pois elas talvez possam nos ensinar não apenas a atravessar as noites, mas a adquirir conhecimento durante a travessia.
Para enxergar melhor, ela fecha os olhos. Assim é mais fácil se jogar na escuridão como se mergulhar fosse o mesmo que planar nas profundezas. Era isso que ela diria mais tarde à mãe: que mergulhar era como voar debaixo d'água. A filha tinha nascido para conhecer o reflexo escuro da luz. Era cria de uma deusa iluminada que vivia nos domínios do céu, mas tinha escolhido viver no lado secreto das coisas. Aquela filha era imensamente diferente e perfeitamente igual à mãe. Ela entenderia tudo logo mais. Para a mãe, voar era como submergir no vazio.
As corujas estão presentes em todos os continentes do mundo, exceto a Antártica. São animais antigos. Provavelmente originários da Europa, elas já estavam na América há dezenas de milhões de anos. São excelentes ouvintes: é graças a uma aguçada audição que elas são capazes de voar e caçar na escuridão, emitindo gritos que ecoam e orientam as corujas feito um radar. São também especialistas na arte dos disfarces. Ao contrário do que acontece com a maioria das aves, os olhos das corujas não refletem luz quando são iluminados por lâmpadas ou lanternas, deixando mais difícil enxergá-las. O canto das corujas também é facilmente confundido com os ruídos de outros animais, mesmo anfíbios e mamíferos. Por fim, elas põem ovos e criam seus filhotes em ninhos abandonados por outros pássaros, o que poderia fazer da coruja um símbolo do reaproveitamento de recursos.
Este foi o primeiro mural da Galeria a Céu Aberto. O processo de criação começou no final de 2017 e envolveu bastante esforço. A encomenda ao artista pedia que ele buscasse inspiração na missão educacional da PUCRS. Koubik fez pelo menos três esboços antes de chegar ao desenho que de fato ganhou a parede. Para pintar o mural de mais de 18 metros de altura e 11 de largura, o artista contou com nove dias de produção no mês de março de 2019.
Enquanto Koubik se esforçou para que as árvores do Campus se integrassem ao mural, fazendo com que, a depender do ângulo de visão, a coruja esteja pousada sobre elas, o desenho também traz em si as imagens de outras plantas nativas do Rio Grande do Sul. Ali estão três violetas, símbolo marista para a humildade, a simplicidade e a modéstia.
A coruja certamente se sente em casa na PUCRS, uma vez que, no brasão da Universidade, temos a inscrição “Ad verum ducit”, que significa “Conduz à verdade”. A instituição também assume o compromisso de integrar diferentes áreas de conhecimento e manter aberto o diálogo entre a fé e a razão. Já desde esse ponto de partida está colocada a ambiguidade da natureza humana: somos capazes de chegar à verdade por diferentes vias. Sem dúvida, a ciência é uma via importante, mas também a arte. Como parte de sua missão, a PUCRS tem entre seus objetivos o de promover a formação não apenas profissional, mas também humana. Não é de surpreender, portanto, que a arte passe a ocupar as paredes do Campus.