A ciência e a mitologia de outro tempo
O mito é uma das mais poderosas ferramentas humanas de compreensão da realidade. Sua forma narrativa organiza imagens e elementos fantásticos, reconhecendo a presença de alma em todas as coisas. O mito esclarece a origem do mundo, feito espécie de prólogo da História.
Não é raro que o mundo ocidental europeu olhe para os mitos indígenas com certa condescendência, como se os povos nativos fossem vítimas de uma ingenuidade irreparável. É uma lástima que não tenhamos registros do que pensaram os povos originários da América do Sul quando se depararam com os colonizadores de hábitos e valores tão diferentes.
Assim como os indígenas brasileiros, os incas foram em grande parte exterminados após a chegada dos colonizadores. Alguns grupos puderam sobreviver ao buscar esconderijo nas cidades de pedra encravadas em montanhas de difícil acesso. Outros poucos, em geral da elite da sociedade inca, se integraram ao novo mundo estabelecendo laços comerciais e sociais com os espanhóis recém-chegados.
Muito da cultura e da ciência andina foi destruído pelos colonizadores. Mas algumas cidades, às quais os espanhóis não foram capazes de chegar, mantiveram suas estruturas no correr dos séculos. É o caso da famosa Machu Picchu, cidade que foi reencontrada em 1911 e que tem boa parte de suas construções preservadas.
Quem conhece a mitologia inca não se surpreende com a proteção oferecida pela cordilheira. Os Apus, os espíritos das montanhas, eram considerados divindades por muitos povos andinos. Até hoje, no Peru, muitos falam sobre os humores e as vontades das montanhas, que podem lançar tempestades ou tempo bom sobre a cidade.
Embora cada região e época tenha seus próprios mitos fundadores e seus próprios sistemas de pensamento, não é raro que haja semelhanças entre as narrativas de criação. Para os incas, o universo também se organizava em três planos, mas suas concepções eram muito diferentes da ideia cristã de céu, terra e inferno. Na cosmogonia inca, o mundo de cima era dos deuses; o mundo terreno, dos vivos; e o mundo de baixo era dos mortos, os bons e os maus mortos sem distinção.
A ilustradora Paula Plim encontrou inspiração para o seu mural na Rua da Cultura do Campus da PUCRS nos animais que simbolizam os três planos do universo inca. O superior, Hanaq Pacha, era representado pelo condor. Graças à sua capacidade de voar 5 mil metros acima do nível do mar, os incas acreditavam que o condor podia se comunicar com o mundo dos deuses e poderia atuar como mensageiro entre os planos. O puma era representante do mundo terreno, Kay Pacha. Símbolo de força, sabedoria e inteligência, o puma andino é capaz de viver tanto em áreas tropicais quanto nos Andes. Por ser paciente e ágil, os incas viam nele o poder da terra. O último plano, Uku Pacha, era representado pela serpente, símbolo tanto da sabedoria quanto do infinito. O plano de baixo, ou plano interior, era o lugar para onde “viviam” os mortos: as aspas se justificam porque os laços que os incas mantinham com os mortos eram muito mais íntimos do que os atuais na cultura ocidental contemporânea. A ideia de falar com os mortos — e aprender com eles — não era mero misticismo, mas uma prática regular.
Se os mitos podem nos encher de curiosidade, a ciência inca nos faz confrontar contradições e situações que continuam incompreensíveis no século 21. Embora não tivessem ferro, os incas eram habilidosos metalúrgicos, e possuíam métodos de fundição de platina que os europeus só dominariam mais de cem anos mais tarde. Estudiosos de astronomia e matemática, os incas contavam com um sistema decimal, como o nosso e, assim como nós, organizavam o tempo pelo ano solar.
Entretanto, eles nunca desenvolveram um sistema de escrita. Ainda assim, os modos de vida inca se espalharam rapidamente por todo o território norte da América do Sul, o que se percebe pela abrangência das marcas arquitetônicas típicas do período. Como ressalta o arquiteto William Mackay, é surpreendente pensar nas conquistas do império inca quando consideramos que se trata de “uma cultura que não tinha ferro, nem conhecimento da roda, nem animais de carga, nem transporte por via marítima ou fluvial (...) para as cargas pesadas, e não usavam cimento e outros materiais conhecidos na Europa e Ásia”.
Cada ser tem o seu lugar, explicou a espiga de milho. Ela não falava, é claro: foi por meio de sonhos que o menino recebeu o ensinamento. À serpente não cabe o mundo dos céus porque os saberes da serpente servem para o interior da terra, assim como os saberes do condor servem às alturas. Aos seres humanos cabe a tarefa mais simples, porém mais difícil: apenas escutar. O menino acordou atento. Naquele dia, na escola, aprendeu que os ruídos de máquinas, perfurações e navios estão deixando os animais marinhos surdos. Filhotes de peixe-palhaço se perdem no infinito do oceano. O menino está atento. Ele escuta o chamado.
No coração do império inca, a cidade de Cusco guarda até hoje vestígios da sofisticada arquitetura inca. Pela técnica do encaixe de pedras imensas (ainda não se sabe como eles as transportavam nem as cortavam), os povos andinos construíram edificações tão sólidas que os colonizadores não conseguiram colocá-las abaixo. As casas que estão hoje no centro de Cusco têm bases de pedra sobre as quais foram construídos pisos superiores de madeira, enfeitados pelos balcões coloniais típicos da Espanha. Quem caminha por Cusco ainda vê que as placas da prefeitura indicando os pontos seguros para casos de terremoto são os locais protegidos pelos arcos incas. Não só eles já sabiam que os arcos são estruturas extremamente estáveis, como construíram arcos que já atravessaram séculos de terremotos.
Já o sistema de agricultura nos Andes se desenvolveu graças à construção das terrazas, técnica que os permitia plantar nas encostas das montanhas sem causar desmoronamentos. As terrazas são sustentadas por muros de arrimo de pedra e irrigadas por aquedutos. Até hoje, ninguém foi capaz de encontrar modos mais eficientes para o cultivo no terreno acidentado do Peru.
Tão afeitos à tecnologia e à ciência, os antigos incas provavelmente aprovariam o método de pintura de Paula Plim. A artista primeiro fez o desenho em pequena escala. Depois, com a ajuda de um guindaste e um projetor, esse desenho foi projetado em tamanho maior na parede, para que a artista seguisse as linhas dos traços. Por fim, Paula trabalhou no preenchimento das cores, inspirada na paleta de cores típicas das tapeçarias e do artesanato peruano.
Alimentação ancestral
Desafiados pelas encostas íngremes, pela altitude de ar rarefeito e pela impossibilidade de criar animais em tal altitude, os incas se alimentavam sobretudo de diferentes espécies de batata, milho, feijão, quinoa e outros grãos. Os alimentos eram mais do que apenas comida. O antropólogo Vilson Caetano explica que muitas culturas indígenas têm uma relação com a comida diferente dos povos brancos: "Quando você está comendo milho, feijão, mandioca, você não está comendo apenas um fruto da terra. Você está comendo um ancestral. (...) Algumas comunidades indígenas contam suas histórias a partir da mandioca como um grande ancestral e algumas comunidades africanas contam suas histórias a partir do inhame. Isso vale para o milho e para todos os alimentos que chamamos de alimentos civilizatórios.”.
Essa relação íntima com o alimento persiste em muitas culturas indígenas brasileiras, mas foi em grande parte perdida nas culturas andinas que antes percebiam todo alimento como algo sagrado, pois tudo era fruto de Pachamama, a mãe terra. O milho, especificamente, tinha seu cultivo regido pela deusa Mama Sara, homenageada em festas anuais. Não era raro que espigas de milho fossem utilizadas em rituais religiosos e que fossem colocadas junto à tumbas como oferendas.
Em alguns territórios andinos mais isolados, ainda adeptos dos modos manuais de cultivo, há tradições antigas que perduram. Em certas regiões equatorianas, quando o milho começa a brotar, as pessoas caminham devagar pela lavoura por considerar que a terra está grávida. Há um certo espanto em constatar, na mitologia inca, conflitos e resoluções similares às que conhecemos das mitologias clássicas greco-romanas. Antes de ser a deusa do milho, Mama Sara era uma mulher bela e inteligente que, por não desejar casar-se com o homem que a cobiçava, pede ajuda a Inti, o deus do sol e principal divindade andina. Para que Sara escapasse do casamento, Inti a transforma num pé de milho. Até hoje, algumas comunidades mantêm a tradição de permitir que apenas mulheres participem da colheita. Os homens abrem os sulcos na terra, mas são as mulheres que semeiam e colhem, pois sob qualquer toque masculino, Mama Sara se enfurece e faz murchar as espigas.
Pode parecer ingênuo, mas talvez o meio ambiente hoje estivesse mais saudável se, desde o começo, nós pensássemos no mundo como entidade viva dotada de espírito. Como disse Julia Kristeva: “É utópico criar novos mitos coletivos, e não é suficiente nem mesmo interpretar os antigos. Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los: dentro das linguagens da modernidade”. Mesmo munidos de toda nossa ciência, às vezes convém ter medo da fúria das montanhas.